A loucura sempre se destacou na história. A concepção de loucura passou por diversas mudanças, indo de uma perspectiva divina digna de profecias e um contato direto com uma força superior, na Grécia antiga, até uma heresia demoníaca que precisava ser exorcizada, na Idade Média. A partir do século XVIII, com o início da psiquiatria, as “alienações mentais” têm como destino o cárcere nos manicômios, e se tornam objeto de estudo para serem classificados e agrupados. A fascinação pelo que se passa nos muros de uma instituição psiquiátrica é refletida em caricaturas cinematográficas. Cria-se inúmeros filmes com personagens estereotipados, em celas almofadadas e uma narrativa aterrorizante. Mesmo que de uma forma deturpada, é interessante pensar o que a loucura possui de tão atrativo para o público que consome esse conteúdo enquanto se distancia com sua fantasia de normalidade. É preciso explorar o elemento identificatório que se negará, ao segregar os “outros”, os loucos de “nós”, “normais”. O que os psicóticos evidenciam de nossa própria constituição subjetiva?
No final do século XIX, o advento da psicanálise veio introduzir uma escuta diferencial para as queixas psicossomáticas das histéricas da burguesia vianesa. Com ela, pôde-se delimitar um objeto de estudo para além da fenomenologia dos sintomas visivelmente apresentados: o inconsciente. Ainda que Freud tenha dado destaque para as neuroses em seus escritos, ele mantém aberta a possibilidade de um estudo psicanalítico das estruturas psicóticas. Jacques Lacan, aceitando o desafio, dedica seu terceiro seminário para elaborar uma continuação da teoria freudiana sobre o caso do Presidente Schreber. Um ano depois, em 1957, Lacan divulga seu texto De uma questão preliminar, em que sintetiza os aspectos mais cruciais de seu seminário sobre as psicoses.
A importância desse artigo para a elaboração de uma clínica diferencial das psicoses é indiscutível. Seguindo uma via despatologizante, Lacan dará a devida atenção à importância do delírio para a estabilização do sujeito psicótico. Contrariando a tendência psiquiátrica de medicalizar e encarcerar, de narcotizar para não incomodar, ele incentiva os psicanalistas a valorizar os significantes do discurso psicótico e a escutar o ponto em que a cadeia falha. Assim como na neurose, o inconsciente psicótico possui uma lógica linguística que aponta para o desejo do sujeito; a diferença é que seu inconsciente se encontra a céu aberto (Soler, 2007). Sendo assim, não é nenhuma surpresa o incômodo causado por um paciente psicótico em sujeitos neuróticos que tentam de tudo para recalcar seu próprio inconsciente.
Encarar o infamiliar que a psicose reflete requer entrar em contato com a nossa falta particular. Ainda que tenha teorizado sobre as psicoses nesse texto, Lacan não deixa de reverberar sobre a constituição do sujeito nas outras estruturas. Sua leitura se concentra no caso Schreber, mas os conceitos que dela extrai servirão para o restante de seu ensino.
É tido como senso-comum que o discurso de Lacan não é o mais fácil a ser compreendido e esse texto não é exceção. Com um estilo de ensino dialético, ele não pretende se fazer entender completamente, pois, em suas próprias palavras “Compreensão é evocada apenas como uma relação ideal. Assim que um tenta chegar perto dela, ela se torna, propriamente falando, inalcançável”. Trilhar o caminho lacaniano é propositalmente angustiante por remeter a falta constitutiva de todo o sujeito, sua fala é cheia de trocadilhos, homofonias, sínteses e antíteses, não muito diferente do discurso inconsciente.
A proposta deste curso não é propriamente facilitar sua leitura, mas oferecer uma perspectiva atualizada de seus conceitos. Através de uma leitura assíncrona, dissecarei os axiomas enigmáticos de Lacan e apontarei os principais ensinamentos que podem ser extraídos do texto. Proponho criar um diálogo nos encontros que realizaremos, tirando dúvidas quando possível e abrindo caminhos para novas possibilidades de leitura. Ao explicar os conceitos que Lacan desenvolveu nesse seu período Simbólico, gostaria de criar um paralelo com sua segunda clínica, a pautada no Real.